27 julho 2009

Coisas de menina

Não tive infância. Ao menos não essa das que falam os futuros-já-feitos-gênios, de lembranças claríssimas, viagens e epifanias de espaço sideral. Minha vista é curta, só alcança as brincadeiras de escada com minha companheira morango cacheada e a cama mundo de minha mãe.

Hoje, se ainda estivesse lá em casa, talvez meus pés ficassem de fora, mas, lá, eram apenas o disfarce do grande tamanho de meu pai; da altura, do pé, da mão – tudo o que compõe o baú que não escolhi carregar.

Cresci, ainda que já tenha nascido grande, ao lado de dois irmãos sete e seis anos mais velhos. Agora me lembro também da ida para a escola de mãos dadas com os dois da mesma forma pequenos-grandes, e de banhos com aquela aguinha roxa pra sarar a catapora.

Sempre gostei de água, conta minha mãe sobre o pedido diário para lavar o cabelo.

Sou grande – ainda ou agora sim de verdade –, posso lavar o cabelo quando quero, e até levar o pão quando posso.

A casa, o quarto, a cama, eles sim diminuíram, mas ainda carregam monstros e assombros assustadores. Por isso choro. Assim, corro nas águas do meu tempo...

26 julho 2009

Eu sou uma mulher

Eu sou uma mulher
que sempre achou bonito
menstruar.

Os homens vertem sangue
por doença
sangria
ou por punhal cravado,
rubra urgência
a estancar
trancar
no escuro emaranhado
das artérias.

Em nós
o sangue aflora
como fonte
no côncavo do corpo
olho d'água escarlate
encharcado cetim
que escorre
em fio.

Nosso sangue se dá
de mão beijada
se entrega ao tempo
como chuva ou vento.

O sangue masculino
tinge as armas e
o mar
empapa o chão
dos campos de batalha
respinga nas bandeiras
mancha a história.

O nosso vai colhido
em brancos panos
escorre sobre as coxas
benze o leito
manso sangrar sem grito
que anuncia
a ciranda da fêmea.

Eu sou uma mulher
que sempre achou bonito
menstruar.
Pois há um sangue
que corre para a Morte.
E o nosso
que se entrega para a Lua.

(Marina Colasanti)

24 julho 2009

meu nome é eu

Era uma vez um menino que se chamava... se chamava... peraí! Talvez seja melhor começar a história por outro ponto. Era uma vez uma moça que vivia encantada com tudo o que via; se espantava com a força daquilo que chamava de vida, que podia ser desde o movimento de um bicho para andar – e também o seu próprio, como bicho que é –, passando por um ronronar asmático de um gato, até, por exemplo, um ronco de fome que sentia, por vezes, sem ter querido sentir.

Adorava ficar bem quietinha depois de uma agitação só para ouvir seu coração batendo um pouco mais pra cima, assim, mais pro pé da orelha. Escutava muito e com atenção qualquer história que se dispusessem a lhe contar.

Um dia, de espanto, a moça percebeu que sua barriga vinha crescendo, e o ronco tão familiar passou a ser acompanhado também por uma mexida engraçada, vinda lá do fundo de não-sei-onde como uma colherada num pote de gelatina.

Mais ou menos assim, sentindo cada dia mais não só o seu, mas o outro coração também, a moça ganhou nos braços o menino que se chamava... bem, desde o início era sua grande dificuldade: antes de chamá-lo, precisava ver por que ele atendia.

Esperou dias até que resolveu batizá-lo de Francisco, como tantos de sua terra e por sua crença no santo querido. Mas não foi só isso não! Com um nome assim, como o de tantos outros, só ele poderia se dar o nome que merecia de verdade.

Nascido, por estranho que pareça, gordinho, o menino – ou Francisco, como queiram – foi crescendo e espichando suas dobras. Parece que nascera com a fome de saber da vida e de tudo o que o homem colocou dentro dela, matéria que tanto impressionava aquela moça.

Passava tempos e tempos que não sei qual medida observando, olhando, ouvindo bem para que quase nada lhe escapasse. Diziam se alimentar de vento porque nunca o viram com um prato de comida na mão. Os outros meninos até estranhavam no início o jeito daquele menino, mas inteligência de criança é lá coisa que se dê pra prever? Logo que perceberam que ele era assim, com seu ritmo meio engraçado, de quem não se apressa pra ser, achando engraçado mesmo assim, foram deixando que Francisco assim fosse.

Também com sua grande sabedoria de criança, Francisco sentia que as brincadeiras que faziam não eram por maldade (como costumam dizer por aí que criança é bicho cruel), quando o chamavam de pé-de-chumbo no jogo de bola, ou pé-de-vento quando, sem perceberem, escapava daquilo que não queria ou não gostava – Francisco não estava mais lá.

Fugia para se-sabe-lá com uma tranqüilidade de peixe dormindo (ou acordado, até porque a gente nunca sabe quando é um e quando é outro). “Deixa ele longe... depois ele volta”, falava a moça espantada, assim como alguns outros que passaram a chamá-lo de Chico porque, me contaram uma única vez, era um jeito mais estalado, assim, menos nome e mais chamação pr'aquele que, também num estalo, ia e voltava de seus tantos outros lugares.

Mas Chico só não bastava e, justo por perceberem bem o que só ele falava e era e se ia, Francisco, por seu próprio pé-de-moleque, do jeitinho que sua mãe com toda sua surpresa tanto esperara, passou a ser conhecido como Chico pé-de-nuvem... ou aquele menino que era uma vez.

23 julho 2009

Carta a um filho


Querido Zé,

nosso tempo é um tempo doido: o mundo se diz globalizado e o que mais se vê é o aumento dos muros de uma nova Babel. Quer dizer, quando digo “o que mais se vê”, não sei bem ao certo se este “se” indetermina, desindentifica e, por isso, generaliza o sujeito da ação, fazendo a coisa vista por si só. O que me parece mesmo é que, em geral, pelo que posso perceber nos lugares por onde ando, as pessoas tendem a se fechar nos guetos – ainda que eles estejam (discursivamente) fora de moda. São os homens de preto, a banda dos pretos sem preconceito, os afro-descendentes, os marrons-bombom, os das cotas, os morenos-claro, os brancos nórdicos, os cor-de-burro-quando-foge, os alternativos, os dimenor, as mulheres de peito, as moças de família, as moças de atitude, as moças de Copa, as moças da Zona... Sul, as gulosas, os gays-lésbicas-e-simpatizantes ou gays-lésbicas-bissexuais-e-transgêneros ou gays-lésbicas-bissexuais-transgêneros-e-queer, enfim, credenciais “minoritárias”, que, pelo auxílio luxuoso do orkut, estão a um clique de qualquer pessoa que esteja se sentindo excluída; a um clique, a solução se abrirá e, junto com ela, um mundo novo também de braços abertos.

Sim, se abrirá mesmo e isso não nego que tudo é mais fácil depois da chegada dos hiperlinks aos nossos escritórios, às nossas salas, aos nossos quartos, ou, aos nossos escritórios e salas e quartos e palmas da mão. Concordo. Tudo é muito mais fácil, embora eu não saiba em relação a qual difícil esse “tudo” melhorou tanto; esse ranço de nostalgia é do que nem sei porque não vivi; quando comecei a me entender por gente, meu pai já estava começando a achar o DOS uma tecnologia atrasada; aos poucos muitos e rápidos, de um modo que não dá nem pra apontar quando, a Revolução Industrial do meu tempo somada a Casa&Vídeo, Casas Bahia, Insinuante, Magazine Luiza, Ponto Frio e seus parcelamentos de até 367 vezes sem juros e sem entrada com a primeira parcela para 15 meses após a data da compra, fizeram com que, enfim, mesmo que querendo, eu não deixe esta pequena carta em manuscrito (afinal, esse purismo não mais se justifica).

Tal sensação de nostalgia e desencaixe herdei de minha mãe, que me conta que no tempo dela é que era bom, que não tinha bip, gsm, sms, html, gps, pan, mas todo mundo se achava, as amizades valiam, os casamentos duravam, as horas marcadas, e, assim, os encontros aconteciam.

E te escrever isso agora me lembrou do Vinicius (tenho que assumir) com seu "Soneto do maior amor", "de véspera", "de intimidade", "de aniversário", "de fidelidade", "do amor total", "de separação", e tantos outros poemas que só fazem a nós mulheres eternas insatisfeitas com o pobre mortal que nos acompanha – filho, entenda, tenha paciência, são as contingências. Mas a lembrança que me veio mesmo foi daquela profecia de que a vida é a arte do encontro no meio de tantos desencontros, e, se vale a pena deixar isto aqui registrado como algum conselho para sua vida, só cito para te dizer que, para ser esse artista, filho, é necessário que você seja um poliglota na sua língua. Assim, você provocará vários encontros na sua vida, e não dependerá (ao menos exclusivamente) desse Encontro marcado nas estrelas.

A grande arte, filho, é conseguir ser múltiplo na unidade: é ser você, se conhecer, se respeitar, ter gostos, afetos, princípios, parâmetros, mas não por isso se fechar ao que o mundo te oferece. Aliás, engano meu, o mundo não te oferece, e é aí que entra o dom de saber falar várias línguas, ainda que elas sejam todas de um único idioma. Para isso, antes de tudo, escute, escute muito: rock, coco, axé, folia, pagode, bossa, boi, jazz; consequentemente, você vai acabar ouvindo as pessoas que estão por trás dessas músicas, e suas crenças, e seus afetos, histórias e princípios. Só assim é que se combate o preconceito de que tanto o mundo se protege e condena; só assim, ao menos para mim, a palavra respeito faz algum sentido.

Ter consciência apenas de um falar não é questão de identidade unicamente, mas também de ignorância – o que é muito normal, já que nada é uma coisa só, ou tudo é já não sendo – mas, tautologias à parte, filho, te digo tudo isso porque dizem que os pais aconselham por terem mais experiência. É verdade. Acredito nisso. Mas também acho que isso não é fator determinante, ponto pacífico ou pedra filosofal; cada experiência é única e só você vai achar a melhor forma de seguir o meu conselho. Ou de não seguir.

Logo, mesmo que eu tenha te deixado esta carta em forma de cuidado, não aceite conselhos sem antes pensar se eles realmente são válidos para a sua existência. Os meus ou os de qualquer um. Se existem tantas formas de arte, de rostos, de textos, de peles, de músicas, não há como se restringir os sopros de tudo isso. A vida também, filho, é o histórico momento presente.