31 julho 2015

macarrão é comida sem graça, você come sempre a mesma coisa.
com a comida, brinco de análise combinatória.
meu prato, no mesmo, nunca é o mesmo.
numa garfada, arroz e feijão; noutra, carne e arroz; numa mais, carne, arroz e cenoura.
e assim vou...
engulo meu mundo de várias formas, minha fome é grande.


mas a combinação fica sempre pro fim... adoro gostinho de quero-mais.

(encontrei esse texto hoje, quando Joaquim tem exatamente três anos, um mês e muitos dias. eu o escrevi e nem grávida estava, mas já (ainda) tinha muito de criança inquieta em mim.)

21 setembro 2012

menina de cá

Mulher recém-parida vive como gato no mato. Anda sorrateira, pisa leve pra não craquelar as folhas caídas.  Come só, e só porque tem de comer.
O pêlo troca, o peito fisga, o bico pinga, a barriga vazia.
Vive em pele e osso porque é o corpo seu novo sentido. Talvez também porque seja a sua principal função ajudar a sustentar o corpo-casa daquele pequeno.
Ninguém ousa tocá-la sem sentido.
É só e solitária a vida da mulher recém-parida. Mas ainda assim, nas poucas visitas que faz ao mundo de lá, ela faz com que seu filho reproduza um sorriso de instinto, fingindo ser pura graça a vigília em que vive.

28 março 2012

nesses dias em que é só toró aqui por dentro, não me escondo mais de ti, filho.
eu te prometo o que tenho, porque desde sempre tu já vens.



Se você vier
Pro que der e vier
Comigo...
Eu lhe prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva...
Se a chuva cair
Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça
Na beira do mar
Num pedaço de qualquer lugar...
Nesse dia branco
Se branco ele for
Esse tanto
Esse canto de amor

Se você quiser e vier
Pro que der e vier
Comigo

("Dia branco", Geraldo Azevedo)


07 dezembro 2011

isquindim de mãe

O quarto estava cheio de água.
Eu me ajoelhei para que a barriga ficasse submersa.
Um peixe grande desses meio-laranja, meio-vermelho, meio-dourado, então, se aproximou, e, como um gato, se esfregou em meu ventre.
Me arrodeou e, voltando pro seu caminho, deixou que eu o acarinhasse, sentindo o liso brilhoso de suas escamas.

Fui presenteada. De mãe pra mãe, recebi o carinho de um filho que ainda se encontra assim, ser nadante na matéria de que sou feita.

09 novembro 2010

"Sou mesmo um dois."

“Lágrima é feita de água e sal. Isso mostra que existe um mar dentro da gente. Chorar é deixar o mar transbordar, eu fantasiava. Chorar é não querer morrer afogado. Chorar ajuda o mercuriocromo a curar mais depressa a ferida. Nunca perguntei à professora sobre as lágrimas. Tinha medo de escutar que ‘a ciência explicava’.

Sendo de açúcar e sal, quem gosta de açúcar vai gostar de mim. E quem gosta de sal vai gostar ainda mais. E para quem gosta de açúcar e sal eu viro arroz-doce. Vim ao mundo com necessidade de ser amado. Eles diziam: ‘Durma cedo que vou gostar de você’, e eu dormia; ‘Coma com a boca fechada que vou gostar de você’, e eu comia; ‘Escreva com a letra bonita que vou gostar de você’, e eu escrevia; ‘Deixa de chupar o dedo que vou gostar de você’, e eu deixava. Tudo o que eu mais queria era ser muito amado.

Até hoje adoro comida agridoce. Sou mesmo um dois. Existe um rolinho chamado primavera. Ele é servido com um molho agridoce nos restaurantes chineses. É um molho feito de suco de tomate e abacaxi. A gente põe na boca e não sabe se é açúcar ou sal. Gostaria de inventar o rolinho inverno para servir no meu aniversário de 119 anos. Meus convidados se serviriam escolhendo o melhor: mel ou limão, e chorariam de tanto rir. Tem uma música que diz: ‘O que dá pra rir dá pra chorar. É uma questão de peso e medida.’”

(Bartolomeu Campos de Queirós – Antes do depois)

21 junho 2010

vulnerabilidade materna

Há feridas que não saram, filha.

E é com esta tua perna manca que farás teu jogo mandingado nessa roda sem ensaio...

08 janeiro 2010

Pela afe(c)tividade verbal

Sim, sou mãe do mundo. O mundo é parte de mim, porque de mim nascido. Ele vive por minha conta e graças aos meus olhos, mesmo quando eles se voltam pra dentro, brancos para esse universo. O sinto, o vejo, o provo. Mas, como minha cria, cria ele as suas pernas, e as minhas, pequenas, não conseguem abraçá-lo. Nem os que dele fazem parte, e o geram, e o criam também, mães por sua vez.

Embora bastante nova ainda, já dei vida a muitos amores. Alguns, com os quais esbarro por tantos caminhos, apenas filhos em potencial... nem chegam mesmo a desafiar as barreiras iniciais de toda maternidade. Outros, gestações interrompidas, pois nem todo fruto há de vingar, lei natural que há pouco aprendi.

Tive, ainda, filhos que me tiraram do peito antes mesmo de poder nutri-los e fazê-los fortes para também me alimentarem. Desses me queixo. O corpo sente a falta da alma e se endurece pela inflexibilidade do que nos força a contrariar a nossa natureza.

Mas aqueles que seguiram seu rumo, ah, por esses me faço o que sempre fui. Menina, mulher. Aceito minha condição de também casa de outros. Tenho um vazio constante que, nesse sentido, só me preenche. Recebo sempre e me doo mais. Tiro de mim o que sempre me falta, me aparto e, dividida, me multiplico naquilo que crio e acarinho.

Apesar de nunca ter gerado um único filho em meu ventre, nutro todos os dias existências alheias, que, de mim paridas, carregam parte do que sou e deixam parte do que fomos.

Por isso, é preciso cuidado. Não medo. Brincar de Deus assim todos os dias é coisa séria. Mas também banal. E não há leviandade no que falo, mas sim a mais pura aceitação dessa minha condição.

Sim, sou mãe do mundo. E assim me paro. Ou, melhor, vou me parindo...





obs.: o texto – também um filho – foi lentamente escrito desde 08 de dezembro de 2009, dia de Nossa Senhora da Conceição.