23 julho 2009

Carta a um filho


Querido Zé,

nosso tempo é um tempo doido: o mundo se diz globalizado e o que mais se vê é o aumento dos muros de uma nova Babel. Quer dizer, quando digo “o que mais se vê”, não sei bem ao certo se este “se” indetermina, desindentifica e, por isso, generaliza o sujeito da ação, fazendo a coisa vista por si só. O que me parece mesmo é que, em geral, pelo que posso perceber nos lugares por onde ando, as pessoas tendem a se fechar nos guetos – ainda que eles estejam (discursivamente) fora de moda. São os homens de preto, a banda dos pretos sem preconceito, os afro-descendentes, os marrons-bombom, os das cotas, os morenos-claro, os brancos nórdicos, os cor-de-burro-quando-foge, os alternativos, os dimenor, as mulheres de peito, as moças de família, as moças de atitude, as moças de Copa, as moças da Zona... Sul, as gulosas, os gays-lésbicas-e-simpatizantes ou gays-lésbicas-bissexuais-e-transgêneros ou gays-lésbicas-bissexuais-transgêneros-e-queer, enfim, credenciais “minoritárias”, que, pelo auxílio luxuoso do orkut, estão a um clique de qualquer pessoa que esteja se sentindo excluída; a um clique, a solução se abrirá e, junto com ela, um mundo novo também de braços abertos.

Sim, se abrirá mesmo e isso não nego que tudo é mais fácil depois da chegada dos hiperlinks aos nossos escritórios, às nossas salas, aos nossos quartos, ou, aos nossos escritórios e salas e quartos e palmas da mão. Concordo. Tudo é muito mais fácil, embora eu não saiba em relação a qual difícil esse “tudo” melhorou tanto; esse ranço de nostalgia é do que nem sei porque não vivi; quando comecei a me entender por gente, meu pai já estava começando a achar o DOS uma tecnologia atrasada; aos poucos muitos e rápidos, de um modo que não dá nem pra apontar quando, a Revolução Industrial do meu tempo somada a Casa&Vídeo, Casas Bahia, Insinuante, Magazine Luiza, Ponto Frio e seus parcelamentos de até 367 vezes sem juros e sem entrada com a primeira parcela para 15 meses após a data da compra, fizeram com que, enfim, mesmo que querendo, eu não deixe esta pequena carta em manuscrito (afinal, esse purismo não mais se justifica).

Tal sensação de nostalgia e desencaixe herdei de minha mãe, que me conta que no tempo dela é que era bom, que não tinha bip, gsm, sms, html, gps, pan, mas todo mundo se achava, as amizades valiam, os casamentos duravam, as horas marcadas, e, assim, os encontros aconteciam.

E te escrever isso agora me lembrou do Vinicius (tenho que assumir) com seu "Soneto do maior amor", "de véspera", "de intimidade", "de aniversário", "de fidelidade", "do amor total", "de separação", e tantos outros poemas que só fazem a nós mulheres eternas insatisfeitas com o pobre mortal que nos acompanha – filho, entenda, tenha paciência, são as contingências. Mas a lembrança que me veio mesmo foi daquela profecia de que a vida é a arte do encontro no meio de tantos desencontros, e, se vale a pena deixar isto aqui registrado como algum conselho para sua vida, só cito para te dizer que, para ser esse artista, filho, é necessário que você seja um poliglota na sua língua. Assim, você provocará vários encontros na sua vida, e não dependerá (ao menos exclusivamente) desse Encontro marcado nas estrelas.

A grande arte, filho, é conseguir ser múltiplo na unidade: é ser você, se conhecer, se respeitar, ter gostos, afetos, princípios, parâmetros, mas não por isso se fechar ao que o mundo te oferece. Aliás, engano meu, o mundo não te oferece, e é aí que entra o dom de saber falar várias línguas, ainda que elas sejam todas de um único idioma. Para isso, antes de tudo, escute, escute muito: rock, coco, axé, folia, pagode, bossa, boi, jazz; consequentemente, você vai acabar ouvindo as pessoas que estão por trás dessas músicas, e suas crenças, e seus afetos, histórias e princípios. Só assim é que se combate o preconceito de que tanto o mundo se protege e condena; só assim, ao menos para mim, a palavra respeito faz algum sentido.

Ter consciência apenas de um falar não é questão de identidade unicamente, mas também de ignorância – o que é muito normal, já que nada é uma coisa só, ou tudo é já não sendo – mas, tautologias à parte, filho, te digo tudo isso porque dizem que os pais aconselham por terem mais experiência. É verdade. Acredito nisso. Mas também acho que isso não é fator determinante, ponto pacífico ou pedra filosofal; cada experiência é única e só você vai achar a melhor forma de seguir o meu conselho. Ou de não seguir.

Logo, mesmo que eu tenha te deixado esta carta em forma de cuidado, não aceite conselhos sem antes pensar se eles realmente são válidos para a sua existência. Os meus ou os de qualquer um. Se existem tantas formas de arte, de rostos, de textos, de peles, de músicas, não há como se restringir os sopros de tudo isso. A vida também, filho, é o histórico momento presente.

5 comentários:

  1. Li todo o blog, Chica. Coisa linda, especial. Para quem sabe o que é o tal sangue correndo nas veias e dentro de si, pra fora. Não sou mulher mas entendo sim o que você diz. E mais. Choro muito pelas lindas palavras, pelas delicadezas contidas na poesia dos conselhos e nas belezas da poesia. Choro mesmo. Feliz e melancólico, como a Lua que insiste em nos mostrar as belezas da Mulher.

    ResponderExcluir
  2. ah, Fábio! que comentário carinhoso!
    Fico muito orgulhosa de sentir que esses meus filhos, os textos – de mim, parte, mas também independentes –, mexem com outras águas que não só as minhas. Obrigada pela entrega!

    ResponderExcluir
  3. É eletrizante assistir a menina dos banhos de "perna-longa" explorar o mundo que as palavras nos possibilitam sentir.

    Te amo.

    ResponderExcluir
  4. Nossa, ainda não tinha lido essas crias suas.
    Quanta intensidade, quanto vigor guardados aí.
    Que bom você ter encontrado um canal adequado para transbordar-se. Esse gênero de escrita me lembra aqueles poemas gregos de aconselhamento a jovens, poemas que partem do cotidiano e alcaçam uma amplitude filosófica.
    Adorei o estilo, consegue ser econômico sem ser pão duro; pelo contrário, soa muito generoso. Muito você.

    ResponderExcluir
  5. Lu, fico muito feliz em ser reconhecida (e me reconhecer) nas minhas palavras, principalmente por pessoas como vc - esses filhos de que falo que me permitem ser o que eu sou. Obrigada!

    ResponderExcluir